sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Reverência pela vida

Todo projeto, bom ou ruim, começa com uma ideia. A nossa se deu em um apartamento acanhado porém bonitinho do setor Sudoeste, em Brasília, alguns meses antes do fim do curso do Instituto Rio Branco (lá por outubro de 2011).  Noivos, cercados de bons amigos e não muito distantes da família, bem felizes. “Gatinha, a gente escolheu essa vida, pra quê ficar postergando? Que tu achas da gente sair pro exterior, ir pra África duma vez? Dizem que o Ministro vai oferecer umas vagas no fim do ano…” Era o começo do nosso projeto, de nossa aventura.
Alguns meses depois, um casamento, muitas despedidas, várias providências de mudança e uma revolução completa em nossas vidas (já em 2012), aterrissamos no aeroporto Léon Mba de Libreville, capital do Gabão. Sim, Gabão. Terra onde 99 anos antes (em 1913), desembarcava o filósofo, teólogo e médico alsaciano Albert Schweitzer, homem que algumas décadas depois (em 1952) seria laureado com o Nobel da Paz em função de sua obra no meio da floresta equatorial gabonesa (obra tanto física – e aí falamos de seu hospital de Lambaréné, que o fez ser conhecido por muitos como o “primeiro médico sem fronteiras” – quanto filosófica e teológica).
(Albert Schweitzer, em Lambaréné, 1932)
“Mas peraí, Nobel da Paz para um senhorzinho com chapéu e bigode de colonialista, instalado em um lugar que simplesmente se chamava ‘África Equatorial Francesa’?” Meus instintos mais libertários faziam-me coçar a cabeça quando, em minha pesquisa básica sobre o país, topava com esse homem, talvez a mais conhecida personalidade relacionada à história desta terra. Mal sabia eu que, a partir do legado dele, finalmente eu começaria a decifrar a questão que mais me atormentava desde minha chegada, o enigma da essência do Gabão.
Enigma, pois cheguei sem entender, de fato, onde estava pisando e (mal sabia eu) ainda com muitos pré-conceitos na mala, por mais que eles não fossem aqueles clássicos, “preconceituosos”: cheguei preocupado com a malária; temendo a falta de infraestruturas modernas; suspeitando da classe política de um país já chamado de “petit émirat pétrolier”, com o maior consumo per capita de Champagne e foie gras de toda África; não entendendo o “bwiti”, o “ndjobi”, o “ndjembé” e demais rituais iniciáticos em um país com frequentes notícias de “crimes rituais” (mutilação humana seguida de assassinato para fins místicos). Aquilo tudo parecia muito pesado, mas algo me incitava a ir adiante com a missão, tinha a intuição de que nada poderia ser tão ruim assim… Ou será que simplesmente nosso “projeto”, iniciado lá no apartamentinho do Sudoeste, era ruim mesmo, coisa de “jovem diplomata” deslumbrado pelo mundo?
Eis que, então, nos instalando, eu e minha esposa passamos a sentir algo diferente do esperado. De início, um certo cuidado dos que iam nos acolhendo, mais que gentileza ou respeito, um tratamento franco, honesto e bondoso. As pessoas – surpresa! -, não andavam tristes, mas alegres, falastronas e sempre elegantes, ora vestidas à ocidental (terno e gravata, jeans e camiseta, etc), ora à africana (tecidos coloridos, “pagnes” e “boubous”). A paisagem se revelava bela, com a praia e a floresta. Se um pouco da desigualdade fatalmente aparecia (carrões e bairros chiques bem próximos dos bairros de casas precárias em permanente racionamento de água e luz), também nossa vida material ia entrando estruturalmente nos eixos (internet, luz, água, tv a cabo…). Nossos pré-conceitos iam sendo derrubados e começávamos a nos envolver. Mas com o quê mesmo?
Eis aí que surge o tal Schweitzer de novo em nosso caminho. Leio em um texto, a propósito da festa do centenário de sua chegada ao Gabão, neste mês de julho de 2013: “a mais notável ideia da filosofia pessoal de Schweitzer (que ele considerava sua maior contribuição para a humanidade) era a ideia de ‘Reverência pela Vida’ (‘Ehrfurcht vor dem Leben’)”. “Reverência pela vida” – hum, interessante. Mas o que seria isso? “A filosofia verdadeira deve tomar como base o mais imediato e compreensivo fato da consciência, que pode ser formulado da seguinte maneira: ‘eu sou uma vida que quer continuar a viver, e eu existo entre outras vidas que querem continuar a viver’. Na natureza, uma forma de vida sempre faz outra como presa. A consciência humana, entretanto, sabe da existência da vontade de viver do outro e tem empatia natural com esse desejo. Um ser humano ético luta para escapar dessa contradição o quanto for possível.” (grifo nosso)
Uau. Faz sentido. Uma boa releitura das teorias idealistas super-kantianas do passado em um primeiro momento mas… Epa! Peraí. Eis que, refletindo, começo a lembrar do Egídio. E do Carlos. E do Monsieur Samba! Da Nina, do Koïta, do Adamou, da Philippine, do Mvou, do Aziz, do Bagnenda, do Ministro, do vendedor de crédito pra celular! Em todos os africanos que ia conhecendo, o conceito ia se encaixando como uma luva. E me dou conta de que a epifania de Schweitzer sobre o papel da solidariedade e da “reverência pela vida” nasceu não de uma viagem de piroga pelo rio Ogooué, após passar por uma manada de rinocerontes, como descrito na Wikipedia mas sim por viver isso na prática com o povo gabonês, em seu hospital de Lambaréné.
Começava eu a desvendar o mistério do “cimento” que fez desse país um dos únicos a nunca ter sofrido uma guerra civil ou distúrbio violento na África ou ser um dos lugares onde mais seguro já me senti andando nas ruas; descubro que o “bwiti” e os demais ritos não eram rituais de canibalismo ou feitiçaria, mas sim a tradição social e religiosa tipicamente gabonesa que garantia a solidariedade entre as gerações, a reverência aos antepassados e, sobretudo, à vida. Entendo que a família estendida africana, que incorpora tradicionalmente muitas pessoas, um clã, uma etnia toda, se prolifera hoje em dimensões verdadeiramente nacionais, criando laços humanos sólidos. Percebo que os fundamentos sociais que conduzem a essa solidariedade inata e à coesão social são muito mais definidores da sociedade gabonesa do que qualquer dos estereótipos negativos tão facilmente disseminados. Fica mais fácil de entender o conceito de ética de Schweitzer. Começo a achar que, no fim das contas, o projeto está se provando bom. Muito bom.

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