Em 1932, foi uma das signatárias do Manifesto dos Pioneiros, juntamente com Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto, Fernando de Azevedo e outros. Escrevia crônicas no Diário de Notícias em que fazia análises consistentes e proposições acerca da educação brasileira. Na série Crônicas de educação, a editora Nova Fronteira publica várias dessas crônicas. A que escolhemos para postar aqui, vale pela reflexão e pelo viés poético - como não poderia deixar de ser, dada sua autoria - que traz.
Sei de uma criança que acordou certa noite no escuro e,
não vendo nada, pôs-se a chorar, pensando que tinha os olhos. Mas
veio a mão que acendeu as luz, e a criança se tranquilizou,
recuperando seu mundo de volumes, formas e cores.
Feliz criança. Nunca mais sofreu com o peso da noite.
Soube que as coisas podiam continuar existindo ainda para lá dos
olhos. Não duvidou da claridade interior da sua imaginação. Se
tivesse ficado cega mais tarde, nem por isso teria sofrido, talvez.
Acreditava nos seus olhos. No poder dos seus olhos transportados do
rosto para outras alturas, criando o cenário de outras visões e os
personagens dos seus espetáculos.
Nem todas as crianças são felizes como o foi essa.
Porque nem todas as mãos são afugentadoras da noite. Há também
mãos cúmplices, semeadoras de treva, que andam lavrando noturnos
campos para com eles escurecerem, voluntariamente ou sem querer, o
sonho que ergue suas perguntas inquietas e a ingenuidade que se
debruça para insondáveis horizontes.
Em vez de acender luzes para corrigir o engano da
escuridão, existem mãos que vêm, elas mesmas, fechar os olhos,
tornando acreditáveis todas as cegueiras. E irremediáveis.
A infância tem tido vítimas inúmeras dessa
crueldade. E a juventude também.
A educação moderna tem de corrigir essa amarga
desventura de quem sente seus olhos perdidos, sem esperança de os
poder jamais encontrar.
Precisamos de educadores donos de gestos generosos e
luminosos, de espírito compreensivo para sentir a inquietude dos
meninos e dos jovens que certa vez despertam e perguntam pelas coisas
que ainda não viram ou que deixaram de ver.
Precisamos das mãos que acendem, que trazem a vida aos
que a procuram, e satisfazem a angústia dos desejos que vêm à tona
pedindo a palavra que os explica e em que as suas hesitações se
sentirão conciliadas.
Essa atitude humana e consciente estará sendo a
atitude real dos que se fizeram diretamente responsáveis pelo
problema de educar?
Estaremos com uma totalidade de intenções voltadas
para essa contemplação atenta dos que esperam a palavra
esclarecedora que a educação lhes deve dar?
Os mil interesses secundários que gravitam sempre em
redor de cada problema não estarão sufocando, muitas vezes, o
instante e a porção mais importante do grande problema da vida?
Essa pergunta eu a gostaria de fazer a um por um dos
responsáveis pela educação no Brasil. Não para que me
respondessem. Para que se
respondessem a si mesmos, com sinceridade.
Cecília Meireles, Rio de Janeiro, Diário de Notícias,
13/11/1931
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